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Família e aprendizagem

Por Elizabeth Polity *


A dificuldade em aprender, que pode estar na base do fracasso escolar, nunca depende de um único fator. Mas saiba que a dinâmica familiar pode contribuir para esse quadro.

Tomás tem 9 anos. Cursa a 3ª série do 1º grau numa escola particular. Filho único de pais separados. Embora com competências cognitivas preservadas, tem dificuldade para ler e interpretar; troca e omite letras e não entende bem os problemas matemáticos. Tomás convive com pai - que é homossexual - nos fins de semana. Sobre isso, nada pode comentar com sua mãe.



Carmem
tem 12 anos. É filha única, adotada quando ainda bebê. Muito dispersiva, não completa as tarefas e parece não entender as solicitações dos professores. Está sempre "no mundo da lua", apresentando por isso, um rendimento escolar baixo. Seus pais estão bastante preocupados, pois a escola diz não poder mais atendê-la.



Luiz
está na terceira série, mas a sua escrita é bem desajeitada. Ele tem dificuldade em desenhar as letras e escreve algumas delas ao contrário. O avô paterno suicidou-se quando Luiz tinha quatro anos. Na família nada se comenta. Esse é um assunto proibido. Na escola, Luiz faz muita bagunça na classe e mostra-se desatento. Raramente ele conclui uma tarefa sem o auxílio da professora.



O que há de semelhante entre Tomás, Carmem, e Luiz? São preguiçosos, obstinados, desobedientes? De modo algum. Todos são crianças tolhidas por uma Dificuldade de Aprendizagem, que se manifesta no desempenho escolar. Alguns nomes técnicos poderiam ser empregados para descrever esses casos, mas pouco importa rotular essas crianças. Sabe-se que nunca há uma causa única para essa dificuldade e, sim, uma conjunção de fatores que interagem, uns sobre os outros, imobilizando o desenvolvimento do indivíduo e do sistema familiar gerando, num determinado momento, o fracasso escolar.


Com base em minha experiência na área educacional e no atendimento a famílias, como terapeuta, pude observar o papel preponderante do sistema familiar no trato com as situações desse gênero e, conseqüentemente, com o fracasso na escola.


Muito poderia ser dito sobre a relação entre família e Dificuldade de Aprendizagem. Prefiro, no entanto, enfocar algumas situações onde a capacidade de aprendizagem da criança está presente, mas não disponível, em função do que caracterizei como "tramas de lealdade familiar". Quero, antes de mais nada, deixar claro que não busco apontar "culpados" pelo desempenho do aluno, mas apenas entender como a dinâmica familiar pode ser vista como co-responsável pela situação escolar, assim como a própria criança, a escola e o meio social.

Segredos transformam-se em ciladas

Na maioria das vezes, as crianças que apresentam Dificuldade de Aprendizagem são sensíveis, captam a situação familiar e a explicitam. Isso pode levá-las a optar pela renúncia à curiosidade, como forma de evitar entrar em contato com segredos, frustrações e com o próprio conhecimento.


Como se sabe, a aprendizagem é a apropriação do conhecimento do outro, a partir do saber pessoal. Ocorre que, em algumas famílias, conhecer pode ser perigoso ou ameaçador. Sobretudo para os sistemas que funcionam como encobridores de segredos.


Não é raro que a família cobre lealdade de seus membros. Isso significa compartilhar os princípios e definições simbólicas do grupo, onde espera-se que cada um não ponha em risco o equilíbrio do sistema por ter acesso ao que é proibido. Quando existe um segredo em família, o que se espera é que seus membros sejam leais ao pacto comum, mesmo que isso implique em renúncias pessoais, como pode ser o caso da aprendizagem.


Dentro dessa perspectiva, o conhecimento que se busca desenvolver na escola, põe em risco o conhecimento da história do grupo, pois, em última análise, as competências internas são as mesmas, para ambos os casos. Pode-se imaginar o conflito no qual ficam presas algumas crianças!

Histórias da vida real

A mãe de Tomás relata que o garoto sempre foi muito irrequieto e que ela não tinha paciência para cuidar dele quando bebê. O casal se separou quando o menino tinha 4 anos. O pai, então, assumiu-se como homossexual e constituiu outro núcleo familiar, com um companheiro. A mãe não se casou mais e disse não ter intenção de fazê-lo. "Nunca deveria ter me casado nem tido filhos. Não fui feita para isso. Acho difícil criá-lo!" (sic)


Há dois anos, o pai de Tomás entrou na justiça para poder vê-lo com regularidade, em fins de semana alternados. Nesses dias, Tomás dorme na casa do pai - junto com seu companheiro - e, quando volta para a casa da mãe, não faz nenhuma referência sobre o que acontece ou vê nesse período. A mãe e os avós maternos dizem que preferem nada comentar, "pois ele ainda é muito pequeno para entender essas coisas. Acho que ele nem vê o que está acontecendo..."


A família materna insiste na manutenção desse "segredo" - aqui entendido como a escolha sexual feita pelo pai - justificando que Tomás não se dá conta da situação. É esperado que o menino nada veja ou diga, poupando assim, sua mãe da crítica da família ("Não queríamos esse casamento!") e de explicações que ela julga dever para a sua família.


Tomás desempenha com bravura seu papel. Sem poder ver ou conhecer lhe é praticamente impossível aprender, discriminar, usar seu saber. Ele não pode dar crédito àquilo que os órgãos dos sentidos lhe mostram, nem tampouco fazer uso de sua experiência pessoal. Ele não está autorizado a conhecer.


Carmem, segundo sua mãe, foi um bebê tranqüilo, passando várias horas no berço sem fazer qualquer ruído. Teve uma infância normal, mas mostrava-se medrosa e desconfiada com pessoas ou situações estranhas. Até os 11 anos de idade não apresentava grandes dificuldades na escola. Embora não fosse uma aluna brilhante, conseguia acompanhar o conteúdo. Em meados do ano passado, a escola chamou os pais, pedindo que encontrassem outro lugar para ela, pois se julgavam sem condições de ajudá-la. Ela se mostrava alheia a tudo e não tinha condições de acompanhar o grupo.


A mãe conta que Carmem nunca fez perguntas sobre sua origem, mesmo sendo muito diferente fisicamente dos pais e estes, por sua vez, também preferiram nada falar sobre a adoção. Entretanto, em função dos últimos acontecimentos, estavam cogitando sobre a possibilidade de revelar a verdade.


Algum tempo se passou até que os pais decidiram pô-la a par da situação. Segundo sua mãe, Carmem ouviu o relato aparentemente muito tranqüila. Mais tarde comentou que sabia que um dia teria de ouvir algo parecido. Manifestou, então, seu desejo de conhecer os pais biológicos, no que foi bastante reprimida pela mãe, que se disse chocada e muito triste com essa ingratidão.


Carmem continua a apresentar dificuldades em aprender e sua escola atual se mostra bastante preocupada com a situação da menina. Carmem ainda se encontra presa nas tramas das lealdades invisíveis, que lhe cobram a renúncia ao conhecimento de suas origens.


O efeito do segredo, para a criança adotada, fica também bastante implicado pela limitação que a lealdade familiar coloca sobre ela, quando demonstra curiosidade pelas próprias origens. Muitas vezes essa curiosidade é vista como uma "traição" à sua família adotiva. Pode-se entender como é difícil estar disponível para o conhecimento quando as incursões pelo terreno da curiosidade são tão ameaçadoras!

Algumas reflexões possíveis:

Muitas vezes um segredo está intimamente ligado à impossibilidade de citar ou comentar um fato a partir da não possibilidade de simbolizar uma situação. Em algumas circunstâncias, a criança pode ter observado algo que era "proibido" ou "inadequado". Para tentar "consertar" a situação a família diz a ela que imaginou e não viu aquilo que viu.


Isso se relaciona com o desmentido (mecanismo estudado por Freud como específico das psicoses, com base numa relação duplo vincular). Significa uma ruptura do eu: uma parte reconhece e aceita a realidade, enquanto que outra a desmente. É como se a criança dissesse: "Já que tenho que fingir que não sei o que os outros sabem, e fazem de conta que não sabem, estendo esta atitude para todo o conhecimento e não posso aprender".


Adoção, violência, morte, doença, homossexualismo, entre outros, são assuntos que costumam ser tratados como segredo dentro do grupo familiar. Os pais podem definir certo segredo como tendo um significado de proteção. E cobram lealdade para a manutenção desse segredo. Entretanto, para a criança, esse mesmo segredo pode carregar em si um significado de traição, pois distorce e mistifica os processos de comunicação. Assim, a criança pode se tornar "cega", "surda", "muda" com relação às informações, e conseqüentemente mostrar-se inapta ao aprendizado.


Nos casos aqui apresentados, pode-se pensar que o esforço em manter o jovem atado à família, por força de uma lealdade, atrasa a maturação e conduz à infantilização. É um recurso mágico de indiferenciação, que impede o indivíduo de desenvolver suas próprias potencialidades e de se realizar como um ser cognoscente.


O atendimento familiar pode ajudar o sistema a identificar os aspectos paralisantes e permitir uma mudança no quadro. Dessa forma o grupo ganha a possibilidade de garantir o desenvolvimento e a diferenciação de seus membros, sobretudo da criança com Dificuldade de Aprendizagem.


* Elizabeth Polity é doutora em psicologia, mestre em educação e tem formação em psicanálise. Pós-graduada em terapia familiar e em psicopedagogia. É diretora do Colégio Winnicot, em São Paulo e dirige a Associação Paulista de Terapia Familiar. É autora dos seguintes livros:
Ensinando a Ensinar - Ed. Lemos, 1997.
Psicopedagogia: um enfoque sistêmico - terapia Familiar nos distúrbios de aprendizagem (org.)- Ed. Empório do Livro, 1998.
Dificuldade de Aprendizagem e Família: construindo novas narrativas - Ed. Vetor, 2001.
Dificuldade de Ensinagem: as histórias que os professores contam - Ed. Vetor, (no prelo).


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